terça-feira, 18 de setembro de 2007

DESENGANOS

Benedito da Silva, ao entrar num shopping para resolver um assunto importante, parou numa loja de artigos femininos. Escolheu algumas roupas, ia pagar quando o homem do outro lado do balcão perguntou:- O cheque é seu?
"É da minha avó", quis dizer. Sempre perguntavam aquilo.
- É - respondeu.
- E o telefone do seu emprego?
Enquanto o homem pegava o cheque e ia telefonar, Benedito olhou para as roupas em cima do balcão. Caríssimas. E se simplesmente saísse com elas? Não...Ele podia pagar... E a Preta merecia. Um ano de namoro.
- Ninguém o conhece lá - o homem disse, quando voltou.
- Como?- Ninguém jamais ouviu falar do senhor.
- Tá certo, então, amigo. Vou comprar em outra loja.
- O senhor aguarde um pouco.
- Aguardar o quê?
O homem, cínico, olhou para a porta, por onde entravam dois seguranças usando ternos impecáveis. Um deles, o mais baixo, de bigodes, estendeu um queixo acusador e ordenou:
- O senhor queira nos acompanhar.
- Isto é um erro muito grande - disse Benedito, espantado.
- Por favor, não complique as coisas.
Levaram-no - perplexo e emudecido - rapidamente para uma sala nos subterrâneos. Benedito, entado numa das duas cadeiras, imaginava se não fora um equívoco ter decidido por aquele shopping. O segurança bigodudo, por detrás de uma mesa, balançou o cheque.
- Temos um problema aqui - falou. É melhor o senhor dizer de quem é isto.
Benedito achou aquilo uma humilhação, um absurdo.
- Vocês não vêem - disse, sem poder conter a exaltação - que é tudo um engano? Merda...
- Veja como fala.
- Falo do jeito que eu quiser - Benedito gritou.
O bigodudo cerrou os punhos e inflou o peito. Parecia feito de aço. O outro homem, o careca, que estivera em pé, quieto, interferiu:
- Calma, bigode, vamos devagar. - Virou-se para Benedito - Pode ser que seja um engano, mas tem um pessoal lá em cima que não vai pensar assim. Por isso, não seja arrogante.
- Então, eu vou lhes dizer uma coisa...
- Diga de quem é o cheque - ordenou o bigodudo.
- Da tua avó.
- Preto filho da mãe.
Aquilo foi mais forte que um soco.
- Porra, bigode! - O careca contraíra os músculos do pescoço e seu nariz quase encostava na cabeça do outro.
- Então, é isso - Benedito conseguiu murmurar.
O careca acendeu um cigarro e falou numa voz macia:
- O meu companheiro se exaltou. Não é isso o que ele pensa, não é, bigode?
O outro encostara a cadeira na parede e não falou nada.
- Olha bem pra mim - o careca ordenou. - Eu sou negro também...
- Porra nenhuma - era o bigode que cuspia no chão.
- Sou mulato. E nunca tive problemas por aqui. Mas o senhor vai compreender... A supervisão lá em cima está nos cobrando. Vem um chefe novo aí e eles querem mostrar serviço...
- Meto um processo em cima dos dois...
O bigodudo cuspiu no chão outra vez.
- Você não tem onde cair morto. Quem sabe a gente não seja promovido se te der uma lição? É isso aí, neguinho, promovidos...
- Cala a boca. - o careca inflamou-se. Depois colocou a mão no ombro de Benedito. - Só irão deixá-lo sair se provar sua inocência. Compreenda, o novo chefe...
Benedito levantou-se, sentia na boca o gosto de algo azedo. Encarou o bigodudo. Seu rosto iluminou-se.- Eu não sei do que vocês estão me acusando.
Na verdade, sabia. No fundo, acusavam-no por estar ali - um local que supostamente não era para ele - , por consumir em lojas que não eram para ele, por ser atendido por pessoas que não eram iguais a ele.
- Parei naquela loja por acaso. Dei o telefone do meu antigo emprego - argumentou. - Talvez tenha errado algum número.
- Antigo? Quer dizer que o malandro não trabalha?
- Vim aqui para isso. Assinar a ficha do meu novo emprego.
Os dois homens se olharam, surpresos.
- Aqui, no shopping?
-Era o que eu tentava dizer. Vou trabalhar na segurança. Dizem que está violenta. Chamaram-me há uma semana... para ocupar a chefia...
O careca deixou cair o cigarro. O bigodudo pensou que a promoção não viria. E Benedito lembrou-se da Preta. Sentiu ternura e, pensando que algumas coisas por ali seriam mudadas, respirou aliviado.

CONTO DO ESCRITOR MÁRCIO BARBOSA
Márcio Barbosa nasceu em São Paulo, em 1959. É membro do Quilombhoje e participou de várias antologias no Brasil e no exterior, dentre as quais se destacam os Cadernos Negros. Individualmente publicou a narrativa Paixões Crioulas (1987).

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